quinta-feira, 23 de julho de 2009

Tradição Oral

Meu avô que é vivo é velhinho, e nunca me contou uma só história. Meu avô nunca me disse nada direito, nem dele, nem de ninguém. Só sei dele o que me falam e a tristeza que vejo naqueles olhos de nunca ter sido entendido direito por nenhum neto. Dá muito trabalho ouvir ele.
É como se ele tivesse perdido a Voz; maiúscula, que vai além do som articulado no ar. Hoje só lhe restam atos. Eu o amo, mas a expressão corporal dele não é das mais simples. A depressão veio e foi, veio e foi com o tempo. O álcool não. Perder pessoas queridas só não é pior que perder a si próprio. Uma vez, várias vezes, até hoje troco umas palavras com o Biguá, meu avô.
Um transeunte que anda semicorcunda, ritmadamente pelas calçadas, com os braços para trás do tronco, segurando o cotovelo esquerdo com a mão direita. Andar que combina com o apelido ornitológico. Moreno, cabelos grisalhos e sem a menor perspectiva de calvície, nariz italiano. Faz mais de trinta anos que ele não fala, tem uma traqueostomia permanente na altura do pomo-de-adão e nunca se adaptou com nenhum aparelhinho de voz. Não teve o mesmo sucesso futebolístico que o xará, que chegou a atuar no antigo Água Verde em Curitiba, e depois no Flamengo.
Toda vez que converso com ele temos exclusivamente um assunto: futebol. Acho que foi meu pai quem me ensinou este truque. Ele é corinthiano, eu santista. Meu pai também era santista.
Acho que meu vô tem um sotaque bem do sul do Paraná. Ele é natural de Irati, ou ali de perto. Minhas avós são polonesas, mas o Biguá é uma mistura bem mais heterogênea. Nosso sobrenome é italiano, mas é sabido de todos que a mãe dele (minha bisa) era bugre, o que quer dizer índio do Paraguai lá onde me contaram essa história.
Esta bisa teve cinco ou mais filhos e morreu quando eles ainda eram crianças. Meu bisavô (de quem meu pai tinha muita admiração), vulgo Macaio, segundo me consta recebeu tal alcunha graças a uma marca de fumo.
O velho Macaio entregou um filho para cada padrinho e caiu na esbórnia. O Biguá trabalhou a maior parte da vida na fábrica de fósforos Paraná como gerente de algo. Tem um dos meus tios que também trabalhou lá contando palitos para colocar nas caixinhas. A fábrica era do Macaio e de mais alguns irmãos, eu acho.
Dois dos filhos acabaram fugindo nestas mudanças e não voltaram mais. Só o Benito, que vivia em Uraí. Ele viveu como bóia-fria, virou indigente, e quando teve um câncer de pele bravo foi que o pessoal voluntário do hospital entrou em contato com a família.
Quando o Benito voltou, meu avô teve mais uma das crônicas crises alcoólicas. Não sei o que rolou com os dois, mas na época isso me mostrou o quanto o não-papo devia ser pesado para os dois. O Benito era santista, foi expulso por um surto do vô e depois foi morar lá em casa.
Dos cinco filhos do meu avô, três sairam corinthianos e dois sairam santistas. Meus tios jogaram todos no Cedrinho F.C. de Iraty. Eu nunca fui muito fã de futebol, não ligo muito mesmo e aos quinze anos achei que se tratava do ópio do povo. Meu avô escuta futebol no rádio.
Outro dia fui com dois amigos no estádio assistir um Santos e Corinthians, só que fui na torcida do Corinthians. Que erro! A sensação de não poder torcer pelo seu próprio time é extremamente delicada. Eu não pude gritar gol e precisei simular contentamento com aquela torcida alheia e carrasca. Tudo para não atentar contra minha própria vida quando fomos derrotados ao final do derby.
Um exercício de paciência. A censura de uma expressão tão primária e forte quanto uma torcida é tal que me levou a um estado borderliner de não sei o quê. Eu só topara a princípio a experiência por acreditar na minha parcial impassionalidade com o assunto, mas jamais aconselho tal experiência para ninguém.
Meu avô grita no meio da torcida e ele deve sentir a vida adversária. Mas isso são coisas que me contaram, a Voz dele eu nunca escutei.

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